domingo, 14 de julho de 2013

...em um chalé

Era velho.
A muito as lembranças tinham abandonado seus sorrisos.
Mexia-se com a dificuldade comum aos de idade avançada e sem muitos exercícios físicos no curriculo do corpo.
Era mais um dia de pouco sol e muitas nuvens. Mas aquilo importava tanto quanto o genocídio de formigas provocado por um tamanduá bandeira no formigueiro do matagal atras do seu chalé. Na realidade nada mais importava.
Sua cabeça era uma mistura de massa cinzenta, poucos cabelos e uma noção cabal de que tudo aquilo deveria estar para acabar. Não havia mais nada com o que se preocupar.
Parentes, amigos da faculdade, padrinhos de casamento, colegas de trabalho. Todos se foram.
Mortos? Talvez. Aquilo também era de parca importância.
Sua vida (não gostava de chamar 'aquilo' de vida) tinha os mesmos centímetros a tanto tempo que já não sabia mais onde começava. Às vezes parecia ontem. Às vezes parecia desde sempre.
Conseguia apenas recordar do dia em que comprara aquele chalé no meio do mato. Lembrava de como seu filho o xingou por ter "torrado toda a grana" que ele planejava usar em mais uma de suas viagens. Lembrava agora nitidamente do sorriso que deu quando o moleque bateu a porta e de como se sentiu vitorioso ao lançar uma ousada 'banana' pelas suas costas.
Quanto tempo tinha passado.
Quantos planos tinha feito.
Pensava em passar o resto dos seus dias cuidando de bichos e plantas, de plantar sua própria comida, de admirar as estrelas à noite, de reverenciar o Sol a toda manhã.
E de dizer a ela um sincero 'Eu te amo' todos os dias, até o fim.
Poeira e passado, agora era tudo o que tinha.
Abandonado por si e pelos seus, só fazia respirar, dormir e acordar.
Não era do tipo que esperava pela morte praguejando como tudo era uma merda e questionando como tudo foi parar ali, daquele jeito. Era oco demais para aquilo. Tinha sido feliz demais para terminar desse jeito.
Seus olhos verdes guardavam a mesma força do garoto que aos 13 subia árvores para saborear maduros frutos. Ou seria imaginação?!
Olhava para tudo com muito carinho, mas não via nada.
Passava a maior parte do tempo na cadeira de balanço da varanda, onde fazia o desjejum todos os dias e se balançava até pegar no sono afagado pelo brilho da Ursa Maior, sua estrela favorita.
Quando dentro de casa, aproveitava a tal força nos olhos para ler livros e bulas de remédios com data de validade vencida. Nem sempre terminava os livros pois não lembrava nunca o contexto de onde tinha parado na estória, mas sempre terminava as bulas e sorria ao lembrar que sempre odiou química.
O único humano com quem tinha "contato" era um adulto que sua filha contratara para levar-lhe comida, livros e remédios uma vez por semana. O homem era tão silencioso que ele supunha também ser mudo, já que nunca falou uma palavra. Sempre chegava quando estava dormindo. Talvez não fosse curioso, podia ser isso. Nunca quis saber quem era o velho que alimentava. Ele também nunca se importou com isso.
No meio de outra manhã fria de todas aquelas que já viveu na vida, acordou coberto em sua cadeira de balanço. Estranhou o calor do pano que o cobria. Tinha calor humano.
Olhou para o lado e viu um sorriso. Sentiu o mesmo calor lhe esfregar os pés, as mãos e as bochechas, que coraram em seguida. Era um sorriso largo, bonito, branco, cativante e familiar. Nunca teve tempo para recordar de onde vinha aquele sorriso tão confortável, mas tinha certeza que já o havia amado em algum momento belo de sua jornada.
Sentiu sua própria boca retorcer-se, como se quisesse se comunicar com aquele sorriso. Sorriu de volta (ou pensou que o fez).
Nesse instante o céu se abriu em uma imensidão de um azul profundo, estrelas começaram a rasgar o infinito em um show particular para aquele velho sentado e coberto em sua cadeira de balançar. O verde de seus olhos reluziram em alegria e uma lágrima brotou. Ele não chorava a mil anos, podia jurar.
Sentiu no peito que os sorrisos não lhe abandonaram, o seu e o que estava ao seu lado, também testemunha daquele show estelar. Sentiu que nunca mais seria abandonado por ninguém, nem mesmo por si, pelos seus sonhos, pela sua esperança e pela sua juventude.
Após um baque surdo no infinito, seus ouvidos testemunharam a mais bela confusão sonora da história do universo! Por todos os lados só haviam sons, e estrelas, e sorrisos, e vozes, e declarações de amor. Outra lágrima.
Só lhe foi dado o tempo de puxar a coberta para mais perto do pescoço a procura de mais conforto e calor humano e de lembrar toda a sua história de uma só vez em uma fração de segundo.
No segundo seguinte sentiu o peso da vida pressionar suas pálpebras para baixo e encerrar o espetáculo para aqueles jovens verdes olhos para sempre.